Fé entre os Espinhos
Pode o crente perder a salvação ou "cair da
graça"?
A Bíblia é enfática em afirmar a segurança dos crentes.
Para dar um exemplo, Jesus disse a respeito das suas ovelhas: “Eu lhes dou a
vida eterna; jamais perecerão, e ninguém as arrebatará da minha mão” (Jo
10.28).
Por outro lado, uma dificuldade que temos é de explicar
como alguém que freqüentou nossa igreja e mostrou-se crente durante um certo
tempo, de uma hora para outra parece que “abandona a fé”. Se sabemos que o
verdadeiro crente não pode perder sua salvação, então o que aconteceu?
Se houve essa “queda” é porque nunca houve nesse coração
a verdadeira salvação. O famoso texto de Hebreus 6 (usado pelos defensores da
perda da salvação) fala de pessoas que tiveram um certo contato com Deus (Hb
6.4-5) e em um determinado momento de suas vidas “caíram” (Hb 6.6). Não devemos
entender nesse texto a palavra “queda” como sendo qualquer pecado. É verdade
que qualquer pecado faz separação entre Deus e seus filhos provocando a
diminuição da comunhão. Nesse texto, entretanto, “cair” é uma atitude
definitiva, o abandono por completo da fé evangélica, a negação das verdades
essenciais do cristianismo. Uma distinção clássica entre esses dois sentidos de
“cair” pode ser vista através dos exemplos de Pedro e Judas. Ambos pecaram
contra Jesus, mas Judas apostatou da fé – caminho que o conduziu à morte –
enquanto Pedro se arrependeu e tornou-se um dos grandes líderes da igreja
primitiva.
A. A Falsa Fé
O autor de Hebreus fala de certo tipo de gente que tem um
padrão de fé (se é que podemos chamar de fé) muito parecido com aquele
demonstrado por Judas. São pessoas que “foram iluminadas, e provaram o dom
celestial, e se tornaram participantes do Espírito Santo, e provaram a boa
palavra de Deus e os poderes do mundo vindouro,” (Hb 6.4-5). É possível que
alguém experimente Deus em tamanha profundidade sem nunca ter sido salvo? Sim é
possível.
João Calvino afirma: “…não vejo razão porque Deus não
toque os réprobos [ímpios] com o sabor de sua graça, ou não ilumine suas mentes
com algumas chispas de luz, ou não os afete com algum senso de sua
benevolência, ou em alguma medida não grave suas Palavra em seus corações”[1].
Sabemos pela Palavra de Deus que Jesus é a luz do mundo
(Jo 9.5; 12.46). Ele é luz para quem? Antes de respondermos essa pergunta,
devemos lembrar que os incrédulos têm seus olhos cegos pelo diabo para que não
enxerguem a luz do evangelho de Cristo (2Co 4.4). Para que a luz brilhe,
entretanto, não há a necessidade de ser vista. O sol nasce mesmo que um
deficiente visual não o veja. Assim, a luz do evangelho de Cristo brilha sobre
todos sem exceção, mesmo que alguns não enxerguem: “ a saber, a verdadeira luz,
que, vinda ao mundo, ilumina a todo homem” (Jo 1.9).
Essa luz do evangelho é a pregação da palavra. Temos a
tendência de achar que o não eleito sempre será indiferente à pregação do
evangelho, mas não é bem assim. Podemos usar como exemplo a parábola do
semeador. Nela Jesus fala da semente que foi lançada em quatro tipos diferentes
de solo, mas em apenas um frutificou. Em outras palavras, quatro foram
iluminados, apenas um teve seus olhos abertos.
Vejamos o que Jesus explicou sobre a semente caída à
beira do caminho: “A que caiu à beira do caminho são os que a ouviram; vem, a
seguir, o diabo e arrebata-lhes do coração a palavra, para não suceder que,
crendo, sejam salvos” (Lc 8.12). O diabo é chamado pelo próprio Jesus de “pai
da mentira” (Jo 8.44). Os que ouviram a Palavra sem que esta viesse acompanhada
da crença vívida em Cristo, tiveram seus entendimentos semeados com a mentira
do diabo, responsável pela incredulidade.
A seguir, Jesus discursou sobre uma semente plantada em
um outro solo: “A que caiu sobre a pedra são os que, ouvindo a palavra, a
recebem com alegria; estes não têm raiz, crêem apenas por algum tempo e, na
hora da provação, se desviam” (Lc 8.13). Esse tipo de solo representa pessoas
que não foram transformadas pelo evangelho, mas tão somente emocionadas pelo
evangelho. Não que haja qualquer problema com a emoção: no capítulo anterior do
Evangelho de Lucas, uma mulher se emocionou enquanto ungia os pés de Jesus com
um caro perfume (Lc 7.36-50); Paulo chorou mais de uma vez (At 20.19, 31; Fp
3.18); Jesus chorou diante da morte de Lázaro (Jo 11.35). O que está sendo
condenado por Jesus são as emoções superficiais. Emoção por emoção sem que seja
acompanhada por uma mudança real de vida. Jesus estabelece uma maneira de se
provar alguém para saber se a emoção e impulsão demonstradas são verdadeiras ou
superficiais: “…na hora da provação, se desviam” (Lc 8.13). Passar por
tribulações prova a fé de todos. Somente os verdadeiros crentes perseveram:
“Bem-aventurado o homem que suporta, com perseverança, a provação; porque,
depois de ter sido aprovado, receberá a coroa da vida, a qual o Senhor prometeu
aos que o amam” (Tg 1.12). Aqueles que abandonam a fé demonstram que na verdade
nunca tiveram fé, somente emoções vazias e superficiais (1Jo 2.19)
Eis então o terceiro tipo de solo: “A que caiu entre
espinhos são os que ouviram e, no decorrer dos dias, foram sufocados com os
cuidados, riquezas e deleites da vida; os seus frutos não chegam a amadurecer”
(Lc 8.14). Este grupo também demonstra alguma resposta ao evangelho sem, no
entanto, demonstrarem a fé verdadeira.
Tanto a semente lançada em solo rochoso quanto a que caiu
entre os espinhos ameaçaram desenvolver-se; chegaram até a germinar, mas isso
não é suficiente porque a salvação é caracterizada pela produção de frutos e
não pelo germinar. Através dessa parábola podemos entender com maior clareza
como alguém pode ser iluminado.
Quando alguém se propõe a viver debaixo dos padrões do
Reino de Deus, algumas bênçãos lhe são estendidas. Mesmo no Antigo Testamento,
época em que Deus só se revelava através do povo de Israel, Salomão
consagrou o templo de Jerusalém e disse entre outras coisas: “Também ao
estrangeiro que não for do teu povo de Israel, porém vier de terras remotas,
por amor do teu grande nome e por causa da tua mão poderosa e do teu braço
estendido, e orar, voltado para esta casa, ouve tu dos céus, do lugar da tua
habitação, e faze tudo o que o estrangeiro te pedir, a fim de que todos os povos
da terra conheçam o teu nome, para te temerem como o teu povo de Israel e para
saberem que esta casa, que eu edifiquei, é chamada pelo teu nome” (2 Cr
6.32-33). Aqueles estrangeiros que se juntassem aos israelitas e obedecessem as
Leis seriam abençoados com as mesmas bênçãos.
B. Exemplos da Falsa Fé
Existiu uma razão muito especial para o autor do livro de
Hebreus falar de uma forma tão pesada como aquela. Alguma coisa no
comportamento dos seus ouvintes lembrava-o de um exemplo passado; um exemplo da
própria história dos hebreus: os quarenta anos de peregrinação pelo deserto. Os
capítulos 3 e 4 discorrem em parte como os israelitas que saíram da escravidão
no Egito pereceram no deserto por causa da incredulidade.
1. Os Hebreus que Peregrinaram no Deserto
Se fizermos uma análise mais atenta, aquela geração do
povo de Israel se encaixa bem na descrição daqueles que são impossibilitados de
renovação para o arrependimento:
Descrição da Falsa Fé (Hb 6.4-5) |
Comportamento dos Hebreus no deserto |
foram iluminados |
A mensagem da salvação foi amplamente pregada ao povo. |
provaram o dom celestial |
Receberam dádivas divinas: desde o livramento da
escravidão até a água e a comida durante a jornada no deserto. |
tornaram participantes do Espírito Santo |
Alguns entendem que isso tem a ver com a vida em
comunidade do povo escolhido, já que a igreja de Deus é o lugar de trabalho
do Espírito Santo. Israel foi ajuntado por Deus como povo escolhido. |
provaram a boa palavra de Deus |
Os judeus puderam comprovar que Deus não falhou em suas
promessas. Prometeu libertar e cumpriu. Prometeu mantê-los e cumpriu. Prometeu
castiga-los em meio à desobediência e cumpriu. |
provaram os poderes do mundo vindouro |
Nenhum outro povo experimentou com tanta intensidade os
poderem do mundo vindouro como os israelitas. Ou seja, Deus revelou-se a eles
de maneira prodigiosa: sarça ardente, cajado em serpente, dez pragas, mar se
abrindo, vara florescendo, coluna de fogo, água da pedra, maná, codornas, rio
se abrindo... |
2. Himeneu e Alexandre - 1Tm 1.19
Paulo lembra de outros exemplos de uma fé reprovada:
“mantendo fé e boa consciência, porquanto alguns, tendo rejeitado a boa
consciência, vieram a naufragar na fé. E dentre esses se contam Himeneu e
Alexandre, os quais entreguei a Satanás, para serem castigados, a fim de não
mais blasfemarem” (1Tm 1.19-20).
Paulo é muito claro em dizer que Alexandre e Himeneu
“naufragaram na fé”. Para explicarmos o que isso quer dizer, temos que recorrer
às experiências vividas pelo apóstolo Paulo porque é daí que ele está tirando a
comparação. Sabemos que Paulo passou por muitas dificuldades em seu ministério.
Por exemplo, algo terrível aconteceu quando ele foi escoltado para Roma a fim
de ser julgado por César. O barco em que estava naufragou (At 27.27-44), mas
pela graça de Deus todos se salvaram. Quando Paulo diz que ouve naufrágio na
fé, a figura de seu próprio naufrágio deve ter sido seu guia para estabelecer a
comparação.
O naufrágio pode ser fruto de uma falta de direção do
barco. A consciência do cristão é seu guia e abandonar a consciência cristã é o
mesmo que desprezar o timão e o leme do navio. Assim como aconteceu no
naufrágio de Paulo, na hora do perigo tudo o que não é essencial deve ser
lançado fora. Himeneu e Alexandre lançaram fora o que tinham de mais precioso:
a boa consciência.
A existência de uma boa consciência cristã foi a
diferença entre Saulo e Paulo. Entre um blasfemador, perseguidor, insolente
(1Tm 1.13) e o apóstolo. “Transbordou, porém, a graça de nosso Senhor com a fé
e o amor que há em Cristo Jesus” (1Tm 1.14). Quando um coração é atingido
pela graça, fé e o amor de Deus demonstrado em Cristo, nenhuma vida permanece
igual.
Himeneu e Alexandre revelaram uma fé reprovada (ou uma
falsa fé); a) crendo e propagando heresias; b) não vivendo em santidade.
3. Demas – 2Tm 4.10
Outro exemplo citado por Paulo de uma fé que se revelou
falsa é personificado em Demas: “Porque Demas, tendo amado o presente século,
me abandonou e se foi para Tessalônica; Crescente foi para a Galácia, Tito,
para a Dalmácia” (2Tm 4.10).
A chave do entendimento se encontra no fato de Demas ter
amado mais o presente século. Já vimos como uma reação inicialmente positiva ao
evangelho pode não redundar em uma fé verdadeira. Usamos na parábola do
semeador as sementes lançadas em solo rochoso e entre os espinhos para
comprovar isso. O que é dito sobre a opção de Demas se enquadra muito bem na
descrição da semente lançada entre os espinhos:
Demas |
Semente entre os espinhos |
Amou o presente século |
“A que caiu entre espinhos são os que ouviram e, no
decorrer dos dias, foram sufocados com os cuidados, riquezas e deleites da
vida; os seus frutos não chegam a amadurecer”. (Lc 8.14) |
Parece
que Jesus divide os espinhos em três principais [2]: 1º
Espinho – Cuidados ou Preocupações da Vida. Esta preocupação condenada
por Jesus extrapola os limites do planejamento pessoal e se traduz por
ansiedade. A ansiedade é amplamente combatida pela Bíblia por ter um alto grau
de destruição (Fp 4.6; Lc 12.4-12, 22-34; Mt 6.25-34; 10.19-31). 2º
Espinho – Riquezas. Embora possuir dinheiro não seja pecado, ter amor
a ele é (1Tm 6.10). Jesus está condenando a busca desenfreada pelo dinheiro (Lc
12.13-21; 16.19-31; 18.18-24). 3º Espinho – Prazeres da Vida. Isso
se refere tanto a prazeres que são nocivos em si mesmos (embriaguez, drogas,
jogos de azar) quanto àqueles que são nocivos se não forem moderados (esportes,
jogos, diversões). As pessoas que são atingidas por estes espinhos nunca chegam
a produzir frutos verdadeiros.
Embora Demas estivesse com Paulo por ocasião de sua
primeira prisão (Cl 4.14), sua fé não foi perseverante. Ele buscou seu próprio
interesse antes das coisas relacionadas ao Reino de Deus.
Conclusão
Não podemos deixar de lembrar que a obediência a Deus é a
maior prova da nossa fé: “Pois todos os que são guiados pelo Espírito de Deus
são filhos de Deus” (Rm 8.14). Estes Deus têm seguros consigo e jamais se
desviarão em definitivo da fé um dia professada.
Aqueles que permanecem, mas logo se desviam enquadram-se
bem no relato de João: “Eles saíram de nosso meio; entretanto, não eram dos
nossos; porque, se tivessem sido dos nossos, teriam permanecido conosco;
todavia, eles se foram para que ficasse manifesto que nenhum deles é dos
nossos” (1Jo 2.19).
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